27 de novembro de 2011

Entrevista: Pitty confessa que só consegue pensar de forma coletiva, mesmo quando canta suas intimidades

Maior artista feminina do rock nacional, Pitty confessa que só consegue pensar de forma coletiva, mesmo quando canta suas intimidades


O fato de Pitty, a artista, se definir como uma banda, funciona como um pequeno trunfo para entender sua carreira. Ou melhor, saber como ela vê/faz a sua trajetória artística. Sempre tive em minha cabeça a certeza de que Pitty era uma pessoa firme em seus propósitos, particular em suas opiniões - e essa certeza não se desfaz ao longo desta entrevista, até se reforça. Mas, ao mesmo tempo, soma-se a essa persona uma pessoa ligada ao coletivo, ao agrupamento. Talvez por vontade de produzir e crescer com sua ‘família’, talvez por ser a forma instintiva de proteger suas intimidades, seu mundo particular, de poder se misturar na multidão. Chamo de instintiva essa maneira de se camuflar porque não se mostra calculada - tudo é direto, limpo. Isso está aí pra gente ver, a olhos nus. Suas letras falam dos outros e para os outros, falando também dela. A própria diz que “em todas as letras é sempre o confessional que aparece, mesmo quando tem esse sentido de coletividade”. O fato é que Pitty, 34 anos, quer se confundir com o coletivo e assim a figura marcante que nos chama atenção, por vezes, quer se fazer comum. 


Ronei Jorge - O rock é um gênero que coletiviza, agrupa. Você acha que isso atrapalha o reconhecimento de algum mérito individual em você? 
Pitty - Gosto da coisa coletiva e não sinto necessidade de chamar atenção para nenhum aspecto, individualmente. Aparece o que tem que aparecer, naturalmente, e, de qualquer forma, acho que nenhum mérito é de alguém sozinho nessa coisa de banda.
RJ - Você é ótima cantora, inclusive passeia por diversos gêneros com tranquilidade. Existe um investimento futuro nisso?
P - Nada é impossível. É só que, por escrever, pra mim, é mais fácil me expressar com minhas próprias palavras. É raro eu encontrar tamanha identificação em composições alheias a ponto de querer gravá-las. É que eu gosto de acreditar em cada sílaba pra conseguir entoá-las de verdade. 



RJ - Sei que você tem outras facetas musicais. Existe essa obrigação de ser Pitty, artisticamente falando?
P - Não sinto que exista uma obrigação, até porque, mesmo dentro do meu trabalho principal, eu sempre deixei espaço para experimentações. Me permiti ser assim dessa vez, porque já tinha passado pela coisa de ter uma banda mais ‘definida’ e, no final, achava muito limitador. Formar o ‘Pitty’ foi justamente a forma de me libertar dessas amarras estéticas, de ampliar o horizonte musical. 



RJ - Me Adora, sua música que mais gosto, é uma letra dúbia. Mas que, para quem acompanha sua carreira, parece uma resposta a quem tem preconceito em relação ao seu trabalho. De onde você acha que vem isso?
P - Tenho algumas teorias sobre de onde vem o preconceito. Pode ser só porque é de praxe achar ruim tudo que se torna popular. Ou, simplesmente, porque não gostam mesmo. E isso é tranquilo, não acho que ninguém tem obrigação de gostar do que eu faço. Mas o que a letra fala - e realmente é dúbia e pode ser aplicada a diversas circunstâncias - é que os julgamentos em sua maioria são feitos de forma superficial, pelo que aparenta ser e não pelo que é. Admitir que achou legal uma coisa que os adolescentes, o povo ou as rádios gostam é constrangedor para os que se consideram parte da intelligentsia brasileira. 



RJ - Com algumas exceções, as mulheres sempre foram vistas no mercado fonográfico como intérpretes. Hoje, temos várias artistas que compõem seu próprio material. Como vê isso e quais dessas compositoras chamam sua atenção?
P - No meu caso, foi uma coisa natural, já que a escrita veio primeiro. Quando minha primeira banda acabou e eu quis continuar compondo, me vi obrigada a, finalmente, pegar um violão e tentar fazer a parte harmônica. Foi a necessidade que fez com que eu me embrenhasse para esses lados. E acabei gostando. Hoje em dia, gosto das composições de Karina Buhr, Nancy Viegas. Acho feminino e original, sem essa obrigatoriedade de ser ‘mulherzinha’ demais, sem se prender ao próprio gênero. 



RJ - Você tem uma ligação forte com o audiovisual, seus clipes falam muito a respeito de seu atual estado artístico. Isso é complementar? Digo: existe algo que você acha que não foi dito na música e que o clipe pode preencher, dar outro significado?
P - É a junção de duas das coisas que mais amo: cinema e música. É a oportunidade de mexer com mais um sentido além da audição. 



RJ - Nos clipes e em algumas músicas, o tema mais pautado é a loucura, o descontrole, a incompreensão. Com tanto sucesso, você se sente ainda incompreendida ou é apenas uma temática que lhe interessa?
P – Mas, quem disse que sucesso ou dinheiro sanam essa sensação? Quem disse que há cura, de fato? Talvez seja só um estado de espírito permanente, uma coisa crônica. É a tal da ‘angústia’ a qual os existencialistas se referiam. Mas ela é, na maioria das vezes, boa, produtiva, e me impele a criar. Então, tudo bem. 



RJ - Em sua opinião, há uma pressão para que a mulher que deseja ser levada a sério expresse menos a sua vaidade e exiba menos a sua beleza? Você sente pressão pra domar a beleza e a vaidade para ser levada a sério num mundo tão masculino?
P - Existem pressões opostas: as que te levam a ter que ser bonita, magra e desejável para ser aceita; e uma espécie de consenso machista comum que diz que toda mulher gostosa é burra, é objeto. Quando comecei, num meio majoritariamente masculino que era o hardcore, achava que, para ser respeitada, os homens tinham que me enxergar de igual pra igual. Isso significava roupas largas, uma certa assexualidade. Queria que prestassem atenção no que eu estava fazendo e dizendo, não nas minhas pernas. Com o tempo, isso foi mudando e eu não sinto mais essa necessidade. À medida em que minhas ideias, pensamentos e objetivos iam ficando mais claros para o público, eu também ia tendo a oportunidade de desabrochar como mulher. Mas é um equilíbrio tênue e que ainda mantenho. Desde o primeiro disco, uma das perguntas mais repetidas é: “Quando você vai posar nua?”. Como se a mulher que chama a atenção em qualquer esfera tivesse como prêmio o aval para se desnudar diante de todos. 



RJ - Ouvindo algumas de suas músicas, eu notei que as letras, mesmo quando estão na primeira pessoa, parecem refletir mais um sentido de coletividade. É um jeito de proteger sua privacidade? Acho Me Adora e Equalize e a nova Só Agora bem pessoais, íntimas. Você se sente mais vulnerável ao entregar esse tipo de composição?
P - Com essas um pouco mais, mas me sinto vulnerável em todas as músicas. Se não pelas letras, pelas entrelinhas. Tá tudo ali, algumas vezes em código. Quem me conhece mais de perto saca melhor. Em todas, é sempre o confessional que aparece, mesmo quando tem esse sentido de coletividade. E acho isso bom, porque de alguma forma fala ao inconsciente coletivo - desejo de qualquer compositor, imagino. 



RJ - Onde foi que o rock perdeu o contato com o rádio e a televisão? Você, talvez, sendo uma sobrevivente desse meio, pode fazer uma análise?
P - Acho que são marés. Vimos ondas passarem - rock anos 80 bombando, a cena dos anos 90, o boom do sertanejo, depois do pagode, o forró universitário... Essas coisas parecem sempre ir e vir. Mas, tentando uma análise da situação, penso que talvez tenha sido um erro que o rock dessa geração tenha corrido atrás de se enquadrar demais quando o movimento estava contrário - era só esperar a sua vez de novo. Só que é um caminho sem volta, porque, se depois essa mesma banda fizer um disco diferente, a porta já vai estar fechada. A não ser que ela se adeque à nova onda do momento. E aí cria-se toda uma geração sem personalidade, correndo atrás da próxima onda. E isso fode as outras bandas que não agem dessa forma. Porque o argumento vira “se tal banda cedeu a tal concessão e vocês não, ela tem espaço aqui, e vocês não”. 



B - Seu público vem amadurecendo contigo ou você percebe mais uma renovação? Você se preocupa com quem dialoga?
P - Não chega a ser uma preocupação, mas um interesse. Antropológico, até. É divertido observar as mudanças do público: quem ficou, quem veio, quem foi embora. Hoje, mais do que nunca, percebo que nosso público está mais maduro. Os jovens ainda são maioria, muitos adolescentes e até crianças. Mas não é mais um público teen, como foi nos primeiros anos. É bom poder dialogar com gente da sua idade e que tem as mesmas referências que você. Eles entendem melhor o que eu quero dizer. Por outro lado, também é ótimo poder contar com o vigor juvenil e com a molecada mais nova, que é extremamente passional. Parece que estamos no meio desse caminho. 



RJ - Se não me engano, já li Renato Russo falando que achava estranho o público reagir com alegria e ‘superficialidade’ a músicas que ele fez com tanta intensidade, que tratam de assuntos ‘pesados’. Te incomoda falar de suicídio em Pulsos, por exemplo, e ter um público reagindo com alegria e euforia?
P - Muitas vezes, eu tenho a sensação de que a maioria não assimila absolutamente nada do que eu tô dizendo, especialmente porque eu vivo o que canto. Uns consomem pelo invólucro. Outros, pela sensação. Alguns (e são os que me fazem continuar) pelo que realmente está sendo dito naquelas músicas. 



RJ - É delírio meu ou, às vezes, o rock parece pudico? Você concorda que, no Brasil, um estilo que pede por liberdade, às vezes, parece reacionário, fala pouco de sexo e quando vê sexo em outro gênero reage com preconceito?
P - Estamos falando de mainstream, que no final das contas é algo totalmente atrelado ao conservadorismo. Não vejo isso no cenário mais alternativo. É por essas e outras que o rock ficou tão bunda-mole: porque cedeu aos caprichos tradicionalistas. O que deveria ocupar o lugar de revolução social e filosófica se transformou num bichinho de pelúcia dizendo sim para todas as opções. 



RJ- Você acaba de gravar com Martin o seu projeto paralelo Agridoce, que, de cara, evidencia uma delicadeza e calmaria. É uma maneira de respirar, de sair da turbulência de shows? Tem algum destino de shows pro Agridoce? Achei Romeu ótima, tem um climão John Lennon, né?
P - Totalmente Lennon. Foi por causa das composições dele que essa música nasceu, porque me apoiei no jeito dele de compor no piano sem ser pianista. Ele me mostrou que era possível criar canções bonitas com simplicidade, sem precisar ser virtuoso no instrumento. E o Agridoce é isso, é esse lugar que me permite experimentar, estudar piano, compor de outro jeito, me aprofundar num lado mais delicado que eu uso muito pouco. É justamente sair daquela zona de conforto e me arriscar a descobrir coisas que ainda nem sei sobre mim como artista. Não sei ainda se vai ter show, se der vontade a gente faz. Mas foi uma delícia gravar o disco, uma experiência que me marcou profundamente. A gente, numa casa no mato, longe de tudo, sem televisão nem telefone, respirando música da hora em que acordava até a hora de dormir. Imersos. Uma bênção poder fazer isso. 



RJ - Participar do 3NaMassa junto com outras cantoras da chamada nova MPB lhe trouxe alguma reflexão pro seu trabalho? Você se sentiu percebida de outra forma depois daquele projeto?
P - Talvez um monte de gente que tinha ressalvas em relação a mim, aquele velho preconceito do “ela é famosinha e cantora dos adolescentes, nós adultos e inteligentes não gostamos disso”, ou mesmo quem está num universo distante, tenha se surpreendido. Ouvi isso algumas vezes: “Nossa, nunca imaginei você cantando desse jeito, na verdade achava que você era outra coisa”, etc e tal. É que muita gente só vê o estereótipo, né? A “baiana roqueira” toda de preto, e acha que você faz cara de mau o tempo todo e que cospe nas pessoas na rua.



RJ - Você acha que existe o medo do rock se associar ao popular? Quando foi que o rock achou que não era pra ser cultura de massa?
P - Aqui no Brasil, acho que foi quando ele percebeu que a cultura de massa era feita por coisas totalmente opostas ideologicamente. Rock é música de massa nos EUA, né? Muito mais do que aqui, pelo menos. Nós temos uma cultura folclórica e popular muito forte, com ritmos muito específicos. E acho que o rock sempre quis significar uma negação disso, o que é um espírito bem característico dele: ser um contraponto. 



RJ - Me lembro de você no Inkoma, tocando na frente da loja de CDs em que eu trabalhava, e lá eu já via uma mulher artista que, mesmo em construção, tinha uma força que é refletida ainda em seu trabalho atual. Coloquei a palavra mulher junto a de artista porque, mesmo num mundo roqueiro masculinizado, você está no topo. Isso passa pela sua cabeça?
P - Nunca soube que nada disso poderia mesmo acontecer, mas também não conseguia fazer outra coisa. Só sabia que, mesmo tendo que arrumar um emprego ou sem nenhuma perspectiva, eu tinha que continuar fazendo para minha própria satisfação pessoal. Você sabe como é. Acho uma viagem quando paro pra pensar que parecia tudo tão difícil e distante. Continuei. Em parte por teimosia, em parte por necessidade interna. Valeu a pena, tudo.